quinta-feira, outubro 27, 2005

Paciência

Apanho o autocarro 58 da Carris em Benfica, junto à universidade, com o intuito de regressar ao meu bunker. Vejo-o chegar, a expectativa e o desejo de me ir embora desvanece-se no ar como o fumo cinzento do seu escape à medida que o vejo aproximar-se do apeadeiro. Deixo de ver um autocarro; passo a ver uma lata de sardinhas amarela, gigante, com rodas. Suspiro e entro (Eufemismo: senti-me apertado). Dou graças a Deus pelos meus 185 centímetros de altura, que afastam o meu nariz da axila infecta de alguém. A cada paragem sai uma pessoa, entram quatro. Quando não mais ("look at them... like flies to cow pies..." é o pensamento triste que me atravessa a mente). A situação toca os limites do absurdo. Toda a gente a reclamar, a barafustar. Pára o autocarro, mais uma manada desenfreada que invade aquele espaço aos empurrões. O espaço desaparece, deixei de precisar de me segurar onde quer que fosse, uma vez que não havia para onde cair. Uma senhora, muito dona de si, num claro grito de ordem como se ali tivesse algum poder, querendo à força entrar num espaço que já ultrapassara a lotação esgotada havia muito, brada aos céus "Furem! Furem!". Resposta categórica de outra senhora, evidentemente não menos iluminada: "Ó minha senhora! Quem fura é o Black & Decker!". Gargalhada geral, resmungos irados entredentes, que a frontalidade há muito se perdeu. Olho a custo pela janela, ainda tanto caminho pela frente. Shakespeare podia ter alguma razão ao afirmar que "a paciência é a mais nobre das virtudes". Mas Shakespeare nunca viajou com a Carris.

(reedição de um artigo escrito por mim no antigo blog "Miradouro", no qual colaborava com o nosso saudoso camarada Miguel)

João Campos