segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Série "Pérolas do Sistema Nacional de Saúde"

(ou "porque é que ainda me vou rir desta história do aborto em hospitais públicos")

A melhor maneira de contar esta historieta é, lamentavelmente, a mais crua: há dias, coisa de duas semanas, fui atropelado pela carreira 29 da Carris, por volta das dezasseis horas, ali em Calhariz, na Estrada de Benfica, nas passadeiras entre o Bazar Chinês e o BPI. Sim, nas passadeiras, mas o sinal estava vermelho. Sem mais perguntas: não me lembro sequer de ter posto um pé na estrada; apenas de acordar, sentado no passeio, cheio de sangue, com uma senhora extremamente prestável (a quem serei eternamente grato) a pressionar a minha testa com um lenço de papel.

Chegou a polícia e o tão famoso INEM - e agora podem pensar que, se estivesse em Odemira, minha santa terrinha, esvaía-me em sangue no passeio antes de a emergência médica chegar, mas não, caros leitores, porque em Odemira, com a fantástica rede de transportes que por lá existe, a probabilidade de se ser atropelado por um autocarro é mais pequena do que levar com um fragmento de um meteorito na axila esquerda, mais para o lado do braço. Do INEM, tratamento irrepreensível, e uma ou duas gargalhadas na ambulância, a caminho do Hospital de Santa Maria.

A caminho do pesadelo.

A minha situação clínica era, fiquei posteriormente a saber, traumatismo com perda de consciência, que quer dizer que levei uma pancada na cabeça e apaguei. Aparentemente não grave, poderia, porém, esconder um traumatismo mais grave, hemorragia interna, enfim, um sem número de situações de arrepiar. Pois bem; dei entrada no hospital por volta das cinco da tarde, mais coisa menos coisa; saí de lá à meia noite. Não estive internado, porém - passei todo este tempo numa sala de espera. Na mesma sala de espera onde são deixados literalmente ao abandono pacientes em condições simplesmente degradantes (como uma idosa, amarrada a uma maca porque não parava quieta, que já se tinha urinado e não parava de gritar - sim, gritar - obscenidades). Estive pelo menos duas horas, sentado numa cadeira desconfortável, a ver macas passar, com uma ferida quente na cabeça, junto à têmpora esquerda, na sequência de, repito, um autocarro em andamento (creio que razoavelmente rápido) me ter atingido. Mais tarde, mandaram-me para uma enfermaria, onde a minha mazela deveria ser suturada - mas isto, antes de fazer qualquer exame que revelasse as verdadeiras consequências do acidente. Nem TAC, nem Raio-X, nada - direitinho para a agulha. A cara das enfermeiras (muito simpáticas, muito giras - a única nota positiva do dia) quando lhes perguntei se não deveria fazer exames antes de levar os pontos foi hilariante. Evidentemente que os exames deveriam ser primeiro. Bem-vindo às urgências hospitalares portuguesas.

Findo este tratamento, mais umas horas, na mesma sala de espera infecta, à espera de poder fazer, finalmente, um TAC e um Raio-X. Feitos os exames, mais umas horas à espera dos resultados, e da consulta médica que avalie esses resultados. À saída, o pagamento - mais de trinta euros, claro está, por um serviço que merecia, no mínimo, uma indemnização de quatro dígitos. Ou mais.

O que quero dizer com isto? Que se por acaso do acidente tivesse resultado alguma complicação interna que tivesse escapado aos paramédicos, eu poderia ter tido sérios problemas durante as sete horas que passei na sala de espera do Santa Maria, nas quais ninguém sequer me disse se poderia comer ou até beber um copo de água. Por sorte, não foi grave; mas, como me disse um senhor que lá encontrei a acompanhar a esposa, "o truque aqui é dizer que dói, gritar, fazer as coisas mais graves do que elas são".

É a saúde deste nosso país no seu melhor. E agora vêm-me falar das "condições dignas" para o aborto? 'Tá bem. Um conselho de amigo: levem uma revista para ler, de preferência com passatempos para fazer, uma garrafinha de água, um pequeno farnel, e, se possível, uma ou duas almofadas. Não é um vão de escada, mas quase.

E é para isto que nós pagamos.

João Campos

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