Pedra Filosofal
Pergunta o amigo Azurara, a propósito do fórum da Antena 1 sobre a agonia de João Paulo II, "0 que será uma morte digna? E indigna?"
Noutros tempos, uma morte digna seria aquela que preservasse a honra. Ou aquela que a não comprometesse. Falo, claro, de um tempo em que os valores, passe a redundância, valiam efectivamente qualquer coisa. Em que a palavra era mais do que suficiente para selar um compromisso.
Com a morte dos valores morais e éticos, creio que, nos dias que correm, o conceito geral de "morte digna" deve ser algo do género de "morte rápida, indolor". Sem sofrimento, sem agonia. Puro non-sense. A humanidade insiste em sonhar com uma pedra filosofal, a ciência médica procura, insistentemente, desde os esquecidos tempos dos alquimistas, um passaporte para a imortalidade, um elixir para a juventude eterna. Escudados pela melhoria das condições de vida e pelo aumento da esperança média de vida, os investigadores da ciência médica procuram todas as formas de prolongar a vida ao máximo. E de anular todos os sinais da inevitável velhice. Repare-se que, antigamente, os idosos eram os anciãos, aqueles que mereciam o respeito pela sua longa vida e pela sua experiência acumulada. Hoje, os velhos são apenas um encargo - para as famílias, para os estados, para o mundo. São o sinal da decadência, do declínio da vida, que todos tentam adiar enquanto podem, esquecendo-se de que mais cedo ou mais tarde serão apanhados na corrida, e acabarão por cruzar a meta em último.
A sociedade tecnocrata ocidental reflecte tudo isto. É a saúde como nova religião. E tudo aquilo que se lhe possa opor é a blasfémia recorrente do século XXI. Pensemos no caso do tabagismo. Ou do álcool. Ou no pequeno prazer que é comer um bom naco de pão com toucinho frito, beber uma cerveja geladinha e fumar um belo de um cigarro a acompanhar o café que se segue. Isto é quase um ataque cardíaco para um cardiologista. Porque o cancro do pulmão isto, porque o fígado aquilo, porque o colesterol aqueloutro... e a qualidade de vida? Define-se por ter uma saúde "de ferro" que mais ano, menos ano acaba por ir fazer tijolo, ou por se dedicar aos pequenos prazeres que nos fazem cair mais cedo, mas que não provocam complexos de consciência nos momentos finais?
A imortalidade para mim seria um fardo. Seria, como diria um americano, the ultimate pain in the ass. Qual a utilidade? Viver para sempre, num mundo em permanente mudança? Feitos são imortais. Se me perguntarem, sim, quero ser imortal. Mas somente através da memória, pelo legado que possa deixar. Que importa se Sócrates (o filósofo, evidentemente), Santo Agostinho, Camões, Shakespeare, Poe, Dalí, Da Vinci, Picasso, Tolkien e tantos outros já morreram? O seu nome sempre será recordado pela Humanidade. A sua obra perdura, e, com ela, o seu espírito.
O meu conceito de morte digna seria um suicídio perfeito, naquele momento fatídico em que pudesse olhar para o céu e sorrir, por tudo aquilo que realmente era importante para mim estar feito. Por ter vivido. Ou apenas uma passagem calma. Ou ainda de armas na mão, a perseguir um novo ideal. Uma morte indigna seria, para mim, perceber que estava a cair para o poço e que tanto tinha ficado para trás. Como se disse no imortal "Dead Poets Society", "... e não, quando morrer / descobrir que não vivi."
João Campos
1 Comments:
Parabéns pelo texto!
A minha interrogação, como se perceberá, era mais uma provocação. É que, hoje, advoga-se a eutanásia como o "direito a uma morte digna". Por mim, acho que é mais uma idiotice destes apóstolos do facilitismo.
Voltando aos seu texto,eu diria exactamente o mesmo, mas falaria em "vida digna" em vez de "morte digna". Afinal, a morte é o fim da vida.
Abraço
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