sábado, outubro 21, 2006

Momento abrupto

O livro

De manhã, quando passei à frente da loja
o cão ladrou
e só não me atacou com raiva porque a corrente de ferro
o impediu.
Ao fim da tarde,
depois de ler em voz baixa poemas numa cadeira preguiçosa do
jardim
regressei pelo mesmo caminho
e o cão não me ladrou porque estava morto,
e as moscas e o ar já haviam percebido
a diferença entre um cadáver e o sono.
Ensinam-me a piedade e a compaixão
mas que posso fazer se tenho um corpo?
A minha primeira imagem foi pensar em
pontapeá-lo, a ele e às moscas, e gritar:
Venci-te.
Continuei o caminho,
o livro de poesia debaixo do braço.
Só mais tarde pensei ao entrar em casa:
não deve ser bom ter ainda a corrente
de ferro em redor do pescoço
depois de morto.
E ao sentir a minha memória lembrar-se do coração,
esbocei um sorriso, satisfeito.
Esta alegria foi momentânea,
olhei à volta:
tinha perdido o livro de poesia.


Gonçalo M. Tavares
In 1, Lisboa, Relógio d'Água, 2004

João Teago Figueiredo