Cenas da vida provada*
Consta por aí que o Governo anda com ganas de colocar as declarações de impostos de contribuintes individuais e colectivos em alojamento próprio, gratuito e de livre acesso na Internet. A ideia que subjaz a esta pretensa medida será fazer com que o povo se auto-policie - ou seja, que o senhor que mora no 2º Esquerdo veja, no conforto do lar, se a declaração de impostos do vizinho do 5º Direito corresponde com o nível de vida que possiblita o colégio em que estudam os seus filhos e o Mercedes que tem na garagem.
Ou seja: a ideia é que todos sejamos um Andrade Sousa ou um Vicente Corvo, sempre prontos a denunciar ao Moloch** o nosso vizinho que não paga os impostos a tempo e horas. Boa intenção. Mas de boas intenções está o Inferno cheio. Passo a explicar porquê:
- Enquanto cidadão pagador dos seus impostos a tempo e horas, o senhor do 5º Direito não tem de expor on-line quanto recebe e quanto desse valor que recebe paga (sacrifica) ao Estado;
- Enquanto cidadão que foge aos impostos quando pode, que moral terá o senhor do 2º Esquerdo para sequer ir coscuvilhar as contas do vizinho na Internet?
- É ao Estado que compete combater a evasão fiscal. Levante o sigilo bancário, analise as declarações de impostos, inquira 'pessoalmente' as empresas para saber quanto pagam e tudo mais. Mas mantenha tudo na privacidade. Como? Não sei. Mas ele que se arranje. Ou, como se diz na minha terra: desemerde-se.
- Tornar os cidadãos (?) portugueses em bufos apenas contribuirá para uma fiscalização hipócrita e para a democratização da inveja. É a derradeira liberalização daquela conversa típica de aldeia (agora suportada por dados estatísticos oficiais): "Sabes que a Filomena e o Alberto ganham juntos mais de seis mil euros? Pois, assim também eu me vestia assim e tinha aquele carro" (etc.). No fundo, é a coscuvilhice cientificamente fundamentada.
Não sou, nem nunca fui, adepto da filosofia do "paga o justo pelo pecador". Os (raros) cidadãos portugueses que cumprem com as suas (exorbitantes) obrigações fiscais a tempo e horas não têm que expor coisa nenhuma para todos cuscarem. Já agora, por que não publicar on-line os extractos bancários e as despesas efectuadas com os cartões multibanco e de crédito?
E não, Azurara: Os extremismos não estão hoje afastados. Estão mascarados, o que será diferente. Enuncio Orwell não como futurologia mas como alegoria. E recordo que este governo já falou (mas entretanto calou-se) em bases de dados genéticas para fins criminais e quejandos. A questão, para mim, é a seguinte: não estou disposto a abdicar da minha privacidade em nome de uma lei que cumpro. Nesse contexto, a Noruega, a Suécia ou a Inglaterra parecem-me óptimos países para fazer carreira.
João Campos
*a quem restar dúvidas, o trocadilho é intencional.
**não resisto a recorrer ao fantástico termo que Joana do Semiramis utilizou. Mais informações sobre Moloch aqui.
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