segunda-feira, dezembro 11, 2006

Confiança

O poema da noite

Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te numa tarde mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos,
nem no gosto feminil.

José Miguel Silva, em Vista para um Pátio, Relógio D'Água, 2003

João Teago Figueiredo - Ghent

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Todos têm acesso à saúde?

É um mito urbano português, esse conto de que no nosso estado-providência assegura serviços de saúde a todos os portugueses. Li essa história, mais uma vez, na caixa de comentários do Blasfémias:

Eu entendo que as democracias europeias (apesar do declínio) têm um pendor mais socializante e vivo bem com isso. Gosto da ideia, por exemplo, de ninguém ficar sem tratamento médico adequado por não ter seguro de saúde etc... e não me importo de ser eu (também) a pagar (....).

Ora o que é que sucede? A autora do comentário, Sofia Ventura, na minha opinião não sabe bem o que está a dizer. Não vou sequer falar da qualidade dos nossos serviços médicos. Vou apenas falar de que, devido a toda a burocracia que o Sistema Nacional de Saúde incorpora, eu actualmente não tenho assistência médica. Porque todo o meu historial clínico (e mais coisas que nem sei nomear) está lá no Alentejo, na santa terrinha, e eu estou a estudar em Lisboa. Lembro-me de ter adoecido quando estava no primeiro ano da universidade, e de ter ido ao centro de saúde da freguesia de S. Mamede, e de ter sido atendido por caridade (literalmente) por a médica que estava de banco. Porquê? Porque a minha ficha não está lá, porque o processo demora uma eternidade a mudar e deixar-me-ia desamparado quando estivesse em casa, de férias, porque estudante em Lisboa é nómada e teria de estar sempre a mudar o processo (nestes quatro anos, teria de ter mudado a papelada toda de S.Mamede para a Pena, e da Pena para Alvalade). Como bem rematou a médica, "estudantes de fora em Lisboa, em caso de doença, estão entregues à bicharada". A doutora que me receitou um antibiótico para as anginas e me examinou o inchaço no pé, fê-lo porque estava para aí virada, e porque não tinha mais ninguém para atender.

Outro exemplo mais caricato? A minha namorada tem uma quebra de tensão (por outras palavras: desmaia e espalha-se ao comprido no chão) em plena paragem de autocarros em Calhariz, perto da universidade que ambos frequentamos. Em frente, há um centro de saúde. Para lá a arrasto, quando ela já está meio consciente. E tenho a seguinte conversa com a médica que estava de banco naquela manhã escaldante de Setembro:

Eu: Ela desmaiou na rua, não sei bem o que foi, provavelmente terá sido do calor. Não sei se a pode ver...

Médica: Onde vivem?

Eu: Hum... Ela vive na Alameda.

Médica: Então ela tem de ir ao centro de saúde da área de residência dela.

Eu: Mas quer que eu a leve assim para o outro lado da cidade?

Médica: Que quer que faça? Tem de ir à área de residência. (olha pelo canto do olho) Isso foi quebra de tensão, não tomou um pequeno almoço como deve ser. (vira-se novamente para mim). Vá ali ao Lidl em frente e compre-lhe uma Coca-Cola, vai fazer-lhe bem.

Ou seja, em teoria, eu podia ser assaltado, espancado e até levar uma chinada em frente ao centro de saúde de Calhariz, com todos os enfermeiros e médicos a assistirem placidamente à porta, que quando à beira deles chegasse a arrastar-me, esvaindo-me em sangue, eles diriam fleumaticamente "mora em Alvalade? Tem de ir ao centro de saúde da sua área de residência".

Por isso, cara Sofia, nem toda a gente que paga impostos tem o retorno devido. Pessoalmente, preferia pagar um seguro de saúde e saber que, quando precisasse, tinha os cuidados médicos de que precisava à minha disposição. No sistema actual, pago para nada.

João Campos

(ah, e a Coca-Cola fez realmente bem - sem ironia. Posso descontar para a empresa de refrigerantes, então?)